Quase 800 milhões de seres humanos vivem com fome crônica no planeta hoje. Nesse mesmo planeta as relações de produção foram arranjadas de modo a fazer com que enquanto crianças morrem por não ter o que comer 1/3 da comida produzida seja jogada fora ou desperdiçada.
Existe, portanto, uma produção de comida no mundo capaz de eliminar a fome, o que não existe é interesse de mercado para que a fome seja eliminada.
Isso porque o objetivo do capitalismo não é alimentar pessoas, mas lucrar com as pessoas, nem que para isso um punhado de milhões delas tenha que morrer.
Um dos paradoxos aqui é que essa super-produção de alimentos é fartamente subsidiada por governos, esses mesmos governos que, braços dados com o mercado, assistem passivamente o alimento ser desperdiçado.
E esse mesmo governo gasta esforços, dinheiro e tempo convencendo suas populações, através da propaganda e do noticiário, que políticas sociais de ação afirmativa – como o Bolsa Família – não levam a lugar algum (embora cada vez mais estudos mostrem o oposto).
“A comida que não é commodity [ou mercadoria] não tem valor para um capitalista, a despeito de seu valor biológico para uma pessoa com fome”, diz texto da revista eletrônica Jacobin assinado por Andrew Smolski.
Aqui vale lembrar que o que define um commodity (mercadoria) são duas qualidades:
A primeira, ser produzido pelo trabalho de um homem ou de uma mulher; e a segunda, ir do produtor ao consumidor através de uma instituição que chamamos de mercado.
No começo da safra, explica o texto da Jacobin, os preços são mais altos, mas conforme vão caindo o fazendeiro age deixando seu produto fora da cadeia de consumo na tentativa de aumentar os preços.
“Os fazendeiros controlam a oferta para afetar o preço a despeito da demanda”, escreve Smolski.
Não se trata de um legume ou uma fruta ser necessário à vida de alguém, mas se trata de saber se o legume ou a fruta pode ou não ser vendido a fim de gerar lucro.
Esse mundo que está aí, e lida com o ser humano como se ele fosse um meio e não um fim em si mesmo, não nos foi imposto, ele foi criado por todos nós.
O sistema monetário que nos controla não é uma ordem divina, embora seja assim tratado, e nenhum dos profetas mandou que se transformasse absolutamente tudo em mercadoria. Muito pelo contrário.
Trata-se de um mundo cujas regras malucas foram criadas pelo homem, que pode, portanto, mudar as regras quando assim desejar.
A questão é que, diante de tragédias como viver em um planeta dentro do qual 800 milhões de pessoas passam fome, deveríamos nos perguntar se algumas coisas básicas à sobrevivência não deveriam ser tratadas como direito e não como mercadoria ou como privilégio. Por exemplo o acesso à moradia, à água, à comida, à educação e à saúde. Ou, em uma palavra, o acesso à dignidade humana.
Uma calça jeans e um aparelho de TV podem ser mercadorias, mas o trigo e o milho talvez tenham que ser vistos de outra forma.
“Pode haver um objetivo outro que não apenas dar lucro”, escreve Smolski.
Por ano cerca de 7 milhões de crianças morrem de fome no mundo. Isso significa quase 20 mil crianças por dia, ou uma criança a cada 14 segundos.
Se os indicadores revelam que existe comida suficiente para alimentá-las, e se o que impede a comida de chegar até elas são as regras desse jogo chamado capitalismo talvez possamos colocar essas mortes na conta do sistema, não?
Vale como argumento para aqueles que ainda usam o lugar-comum de o “o capitalismo pode ser não o sistema ideal, mas e o comunismo que matou milhões de inocentes?”
“Se o objetivo fosse alimentar pessoas em vez de gerar lucro o que isso implicaria? Implicaria transformar a comida de mercadoria em direito”, escreve Smolski.
E o texto termina:
“A fome não é inevitável; é uma escolha. Podemos escolher acabar com ela”
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